E ao séptimo dia Deus decidiu parar, e espreitar toda a obra que
tinha feito. Mas sendo um ser tam omnipotente e bulebule como era (fixera o
universo inteiro, afora o home, em apenas seis dias) nom conseguiu descansar
muito, porque a mente nom lhe parava de fervilhar. Alô sentado no seu alto
trono, questionava-se sobre a qualidade e pertinência da sua criaçom. De modo
que, contra o final do dia, o sétimo da Criaçom, entrárom-lhe dúvidas e
receios, amais dumha considerável enxaqueca. Ele-essas baleias e peixes grandes
do mar, nom acabariam por dar cabo de tódolos peixes pequenos? E a relva verde,
ele-nom poderia acabar por secar? E se a luz vinhese a se apagar, por qualquer
falha imprevista nos circuitos moleculares, aliás atómicos?
Aquela noite Deus foi deitar-se bastante deprimido, por nom saber
donde lhe vinham todas essas dúvidas e incertezas. Mas ao dia seguinte, segunda
feira por sinal, decidiu dar cabo de todos os seus medos, e pôr-se maos à obra:
e Deus criou o home. E criou-no à sua imagem e semelhança ...
No
planeta Arrakis, ao abeiro dumha espenuca (nesse planeta costuma haver acotio
tempestades de muito nabo) atopam-se com Gurney Hallek (o famoso trovador
caladano) cinco outros trovadores:
Um
deles é inglês.
Outro
é francês.
Um
outro é italiano.
Mais
um outro é espanhol.
E o
derradeiro é português.
Assi
que o Gurney começa a tocar no seu baliset de nove cordas, ocorre-lhe umha
pergunta de tipo histórico-linguística. Diz assi (traduço ao galego, pra
facilitar a compreensom):
«Alô
longe, mui longe, há um planeta, azul e nom coma o nosso, cheio de auga que nem
o próprio Caladan, em que havia milheiros de trovadores. O derradeiro e mais
milhor de todos eles chamava-se Bob Dylan, que escrevera cousas sublimes coma
«estava eu a navegar na Frol de Maio quando cuidei albiscar terra». Mas antes
dele houvo muitos outros. A pergunta-desafio do milhom de doses de melanxe, é a
seguinte»:
«Quem
dentre vós é quem (dentre vós) de declamar o mais antigo e belido poema-cantiga
da vossa língua, mas que seja tam comprensível, pra vós, quanto belido e
antigo?»
O
francês salta de contado, já se sabe como som patriotas os dessa naçom, mas
como nom sabia nada de francês antigo que fosse compreensível pra ele mesmo,
ficou-se por um verso de Ronsard («Ah longues nuicts d'hyver de ma vie
bourrelles, Donnez moy patience, et me laissez dormir» ) e que de resto nom
vinha a calhar numha noite de tempestade de areia em Arrakis (onde os ventos som
tam fortes que é sabido vos podem arrincar coma coitelos a carne dos ossos).
O
inglês, mais comedido, acha que o seu tempo é chegado: «ele-eu tamém tenho algo
pra recitar» («I will, if I may», dito na sua fala) e começa a recitar qualquer
cousa do Guilherme Xaquespeira, tipo, «I like this place and willingly could
waste my time in it» (E isto até o português o entendeu.)
«Moi
bem», dixo o Gurney, «tam antigo coma o francês, e ainda nom menos belido e
considerado» (e aí os protestos do trovador francês de que o idioma inglês
provinha do francês nom recebérom muita atençom).
Toca
ao italiano:
«Nel
mezzo del cammin di nostra vita
mi
ritrovai per una selva oscura
ché la
diritta via era smarrita. »
«Bom,
se quadra nom som os versos mais belidos que já ouvimos, — retrucou o Gurney —
mas som mais antigos e venhem bem a calhar nesta cova de refúgio em que nos
achamos ... »
O
turno é agora pró espanhol, que consulta no seu iPhone 7 Plus e recita o seguinte:
«De
los sos oios tan fuertemientre llorando,
Tornava
la cabeça e estávalos catando»
E aí
que o português se ergue de súpeto, e protesta: «isso não é bonito, pá, e de
resto é português!». O espanhol nom parece fazer muito caso, porque anda mui
ocupado no seu iPhone 7 Plus, a pescudar tradutores automáticos ou dicionários
on-line que lhe ajudem co significado desse poema, que decerto lhe escapa ...
Gurney,
matinando e afinando no seu baliset, diz, «mmmh, nom sei, nom sei ... » incerto
ele tamém do significado da velha cantiga espanhola ou portuguesa ...
Entretanto,
o português era o único que faltava por declamar. E como os portugueses som,
como sabemos, mui aleutos e espilidos (=espertos), o nosso português de Arrakis
pega no seu velho magalhães (este era um exemplar raro que ainda funcionava) e
fai umha pescuda internética por algumha velha cantiga galega. E saiu com esta:
«Quantas
sabedes amar amigo, quantas sabedes amar amado, treides comigo ao mar de Vigo,
e banharnos-emos nas ondas, etc».
O trovador
dos Atreides (que era poliglota, amais de trovador), fica estantio perante a
beleza e singeleza desses versos supostamente portugueses, que portugueses eram
pois que o português os entendia, e eles eram os mais antigos de todos os que
já ouviram naquela espelunca, e nesse mesmo intre, coma por obra dum milagre,
os seus olhos se acendérom dumha faiscante luz azul ...
No
primeiro dia Deus ergueu-se, emborcando-se da cama. Ergueu-se e abriu os
cortinados. Achando umha mourém desconhecida, estalou os dedos, e umha estrela
imensa apareceu a xurdir nos horizontes (previamente Deus tinha feito os
horizontes, e os cortinados, e a cama). No segundo dia, Deus, encaminhou-se prà
cozinha, aqueceu um café e bebeu-no. E o café era quente; e bom. A seguir, Deus
foi pra um lugar iluminado, e dixo, «haja livros». E livros, imensos livros,
aparecêrom em imensas prateleiras. Mas eles estavam cheios de folhas vazias, e
nom prestárom a Deus. Esse foi o terceiro dia (nom o milhor que Deus já tivo).
Dixo
entom Deus, haja letras, letras em diversos e variegados formatos, mesmo cores,
a formarem palavras, palavras em falas variegadas e ricas, que contem cousas
antigas e inventadas, pensamentos dos mais ridículos aos mais singelos, e todas
essas palavras ateiguem os livros todos que eu aqui tenho. E foi esse o quarto
dia de Deus (claramente melhor ca o terceiro).
Viu
entom Deus que a estrela imensa que xurdira polos horizontes, no primeiro dia,
tinha já rubido um algo por riba deles, e vendo que eles eram azuis, decidiu
chamá-los céus, por falta de outro nome mais ajeitado. E contra o final do
quarto dia, Deus já tinha lido tódolos livros que jamais fôram escritos.
No
quinto dia, que é o que sempre segue ao quarto, Deus decidiu ir à casa de
banho, e sentar a profundar os seus pensamentos na sanita. Alô sentado argalhou
muitas cousas, mormente todas as referentes aos seres humanos, que eram os
únicos seres capazes de ler os seus pensamentos em tódalas línguas existentes.
Ao
sexto dia Deus turrou da descarga, e viu que aquelas augas em correntes
autoclísmicas eram boas, pois levavam consigo toda a merda que ele tivêra
criado nos cinco dias anteriores.
Chegou
entom o séptimo dia, que era quando a estrela imensa dos céus estava no mais
álgido deles. E Deus decidiu descansar, pra contemplar tudo o que tinha feito
nos seis dias precedentes, sob a estrela imensa que ele criara dum estalo dos
seus dedos. E viu Deus que o que tinha feito nom tinha valor nengum, e que tudo
estava por faguer. E pensou, «ainda bem». «Fagamos-nos na nossa própria imagem
e semelhança, entalado num ser de carne e espírito, feble, fraquinho, que seja
quem de dividir o tempo em partes infinitas, e de fazer dum simples respiro
umha eternidade. Desfrutemos do contato da auga dumha bilha a cair num pano de
cozinha, dumha pegada nua nas areias dumha praia, do ar a nos remexer nos
cabelos. Do mar, do mar.» E viu Deus que, afinal, nom era tam ruim ...